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25 anos sem Senna: os detalhes sobre o fim de semana do acidente

25 anos sem Senna: os detalhes sobre o fim de semana do acidente

Olá amigos.

Temas como o deste segundo capítulo da série “Senna, 25 anos depois” (veja o primeiro aqui) podem ser melhor aproveitados por quem lê quando redigidos em primeira pessoa por quem testemunhou tudo aquilo de perto, em Ímola, no fim de semana mais nefasto da história da F1.

Como acompanhei tudo o que aconteceu no Circuito Enzo e Dino Ferrari de perto, como repórter do Estadão, considero oportuno contar a vocês, em detalhes, o que vivi, expressando-me na primeira pessoa. O texto é longo, mas se você tem interesse no tema, penso que encontrará informações até inéditas. Boa leitura.

Na quinta-feira anterior ao GP de San Marino, terceira etapa do Mundial de 1994, vários jornalistas aguardavam a chegada de Senna ao autódromo. Dentre eles, eu. Já passava das 15 horas e nada de ele aparecer na pista.

Senna estava numa cidade próxima, Ferrara, para o lançamento de uma bicicleta com a marca Senna. Ela reunia, claro, o que de mais avançado existia em termos de tecnologia. Senna procurava associar seu nome apenas a produtos de excelência.

De repente, uma pequena multidão começou a se deslocar dentro do paddock, sinal característico da aproximação de Senna. Com Senna era sempre assim. Onde estivesse, no mundo todo, seu carisma, sua forma de instalar-se no coração das pessoas o tornava íntimo de brasileiros, japoneses, malaios, hondurenhos, congoleses e australianos. Sua figura tinha a extraordinária capacidade de as pessoas não se lembrarem da sua origem, cor ou religião.

Um ser imortal

vSua determinação, competência e fé, esta nunca escondida, transformaram Senna em um semideus, um ser imortal. A comoção que se seguiu a sua morte decorre muito dessa conotação de imortalidade que lhe atribuíam.

Depois de atender os jornalistas de língua inglesa e italiana, quinta-feira à tarde no autódromo de Ímola, Senna comunicou a nós brasileiros que em seguida falaria conosco. 

Ele entrou no motorhome da Williams para conversar rapidamente com Frank Williams. Saiu logo e sentou-se para comer.

Estava numa das mesas da área coberta, ao lado do ônibus da equipe. Os milionários motorhomes de hoje não existiam. As equipes se limitavam a seus ônibus e lonas estendidas, onde sob ela tudo acontecia.

Senna nos convidou para sentar também e, enquanto saboreava um prato de macarrão, com molho branco, conversou conosco. Não havia mais de quatro ou cinco jornalistas com ele. 

Tinha os cabelos longos, uma camisa xadrez. Brincamos, entre nós jornalista, que aquela camisa se assemelhava às das duplas sertanejas. As autênticas. Senna sempre foi muito discreto com suas roupas. Naquele dia fugira ao seu padrão.

Sempre com o olhar distante, como se algo o incomodasse profundamente, respondia às questões visivelmente com a cabeça em outro lugar. “O carro deve melhorar aqui, nós o estamos entendo melhor, a pista não é das mais onduladas e terei um pouco mais de conforto agora.”

Espaço apertado

A seu pedido, Adrian Newey e Patrick Head, responsáveis pelo modelo FW16-Renault da Williams, promoveram no pouco espaço de tempo entre a prova anterior do campeonato, em Aida, no Japão, e aquela, apenas 15 dias mais tarde, alterações no cockpit. 

Senna batia com as mãos nas paredes internas do cockpit quando pilotava. Mais para a frente veremos que esse fato acabou por ser determinante para o acidente que o matou apenas três dias depois. Segundo a perícia técnica, que investigou o acidente, a nova coluna de direção, mais fina, quebrou na curva Tamburello.

A porção dianteira do cockpit era impensavelmente estreita. O regulamento da F1 na época não impunha as mesmas dimensões mínimas de hoje, mais humanas. E Adrian Newey foi, como sempre, no limite. Ao virar o volante, Senna esbarrava com a parte superior da mão nas laterais internas do cockpit. 

Ao longo de quase duas horas de corrida aquilo era um problema. Sua mão acabava ferida. Chegou a nos mostrar as marcas na pele sobre os ossos da mão.

Grande tensão

Senna estava visivelmente perturbado. Primeiro havia a questão do duplo abandono nas duas primeiras etapas do Mundial, em Interlagos, prova de abertura, e em Aida, segunda do calendário. Contra todas as previsões. 

Ficou claro para Senna: Michael Schumacher e a Benetton eram adversários muito fortes e sua Williams, “um desastre”.

Não é tudo. Fora das pistas as coisas exigiam também de Senna muita dedicação, ajudando a compor o quadro de extrema apreensão que vivia. Ele estava investindo pesado em alguns negócios e, naturalmente, isso o preocupava.

Altos Investimentos

Acabara de assinar um grande contrato com o fabricante alemão de automóveis Audi para representar a marca no mercado brasileiro. Era coisa de milhões e milhões de dólares e muita responsabilidade. Ao mesmo tempo adquirira a concessionária Ford Frei Caneca em São Paulo. Seu sócio, o Bira, estava em Ímola. Havia ainda muito o que acertar sobre essas transações.

Durante o almoço de Senna conosco no motorhome da Williams, já próximo das quatro horas da tarde, chegou Ricardo Patrese, que abandonara as pistas no fim da temporada anterior. A forma alegre, expansiva com que o italiano falava com Senna, ali no nosso lado, contrastava com a postura fria, distante do brasileiro, apesar do seu esforço em desejar expor a Patrese seu contentamento em vê-lo.

Orientado a não correr

 
 
 
 
 
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Veremos mais à frente que o clima de tensão para Senna cresceu tanto, depois do grave acidente de Rubens Barrichello, da Jordan, no dia seguinte, sexta-feira, e da morte de Roland Ratzenberger, da Simtek, no sábado, que o médico da Fórmula 1, doutor Sid Watkins, chegou a conversar com o piloto, sábado à noite, orientando-o a não disputar o GP de San Marino.

“Mas o que é que eu vou alegar para a equipe, estamos 20 pontos atrás de Schumacher na classificação? Apenas que não estou bem?” Sid Watkins nos contou, anos depois, que foi isso que Senna lhe respondeu naquele dia.

Sid Watkins era um homem notável. Neurocirurgião, criou depois da morte de Senna o FIA Institute para cuidar da segurança da F1, dentre outros interesses. E realizou uma obra gigantesca, como vocês viram no primeiro capítulo desta série. Sid Watkins morreu em 2012, aos 84 anos.

Carro instável

O regulamento da F-1 mudou radicalmente naquela temporada de 1994, os recursos eletrônicos, ponto forte da Williams nos dois anos anteriores, vencidos pelo time, foram proibidos. O FW16 de Senna era muito difícil de ser pilotado, instável. Mas poucos sabiam. 

O que aparecia para a torcida era que Senna, grande favorito a ser campeão do mundo, não havia marcado um único ponto. Em contrapartida, seu principal adversário, Michael Schumacher, da Benetton, vencera as duas primeiras etapas da temporada.

Mudança fatal

A boa notícia para Senna é que a partir daquele GP poderia movimentar mais as mãos e os braços. O volante do modelo FW16 havia sido abaixado poucos centímetros e agora ele não batia mais as mãos nas paredes do cockpit, ao lado do volante. “Ficou melhor”, limitou-se a dizer Senna. 

Raramente ele dava detalhes do que havia sido feito no carro. Quando ele contou o que Adrian Newey fez no FW16 surpreendeu quem ouviu. Tudo para Senna era “segredo estratégico”.

Pausa para o almoço, entre a sessão livre da manhã e a classificatória à tarde. Naquela época havia treino de definição do grid na sexta-feira e no sábado.

A concentração de Senna para sair daquela situação de desvantagem diante de Michael Schumacher e da Benetton era total. Suas declarações eram quase sempre monossilábicas, sinal típico de que estava focado em algo maior. Senna era assim: uma série de comportamentos denunciava o que ele buscava.

Lembro-me uma vez de ele nos contar uma história: “Quando vocês me virem inclinando o capacete para o lado de dentro das curvas, saibam que tanto eu como o carro estamos no limite “. 

Outra senha era a sua reação com poucas palavras. Se ele dissesse apenas sim ou não, ou até nem respondesse, então alguma coisa o incomodava. Naquele GP, especificamente, já vimos que eram muitas coisas que o perturbavam e não uma só.

Desde 1987, cubro profissionalmente as corridas de F-1 como jornalista, apesar de apenas a partir de 1991 passar a segui-las de forma regular, indo a quase todas as etapas. Tive poucas chances de conversar com Senna de forma mais profunda, informal. Abordar temas que não fossem relativos ao automobilismo.

Ainda mais preocupação

O clima de apreensão para Senna no GP de San Marino cresceu ainda mais no começo da sessão de classificação da sexta-feira à tarde. Logo no início do treino, as imagens nas TV do circuito focalizaram um carro com as rodas para cima, em um local ainda não identificável.

Era Rubens Barrichello, jovem piloto brasileiro de 21 anos, tido na F1 como um talento nato àquela altura. O seu voo na Variante Baixa foi de assustar. Desacordado, nos instantes iniciais do socorro médico, as consequências pelo ocorrido sugeriam ser graves.

Senna, como muita gente no paddock, foi até o ambulatório médico instalado muito próximo de onde Rubinho bateu, antes do primeiro box. Eu estava a uns 20 metros da entrada do ambulatório, no limite da área isolada pelos organizadores, quando vi Senna passar por mim indo em direção aos médicos. Sua expressão era muito tensa. 

Até então se imaginava que algo de mais sério teria acontecido com Rubinho, afinal ele bateu a cerca de 200 km/h no muro, com o carro voando sobre os pneus. Não demorou muito, uns 10 minutos, e Senna deixou o ambulatório rapidamente. Ele tinha os olhos visivelmente marejados.

Eu já havia vivido situação semelhante, em 1990, em Jerez de la Frontera, quando Senna foi até a pista acompanhar a assistência médica ao irlandês Martin Donnely, da Lotus, que sofrera o mais impressionante acidente que já vi, pessoalmente, na F-1. Como na Espanha em 1990, Senna também chorou em Ímola, por causa de Rubinho. “Por favor, me deixem passar, ele parece que está bem, está bem”, se limitou a nos falar. Estávamos na porta do ambulatório.

O treino ficou interrompido por 22 minutos. “The show must go on” é o lema da F1, ou seja, o “show deve continuar”, e assim foi feito. As notícias sobre Rubinho era tranquilizadoras, para surpresa de muitos.

Os pilotos voltaram a disputar a classificação. Fazia calor, 28 graus. No fim da sessão, Senna conseguiu ser o mais veloz, como já fora no Brasil e em Aida: 1min21s548 diante de 1min22s015 de Schumacher. “Tivemos um treino caótico, o acidente do Rubinho afetou a todos. Não consegui dar uma única volta bem feita, quando acertava aqui errava ali”, afirmou Senna. “No final, ser o mais veloz é ótimo, acima do que eu poderia esperar”, completou.

Senna visita o amigo no hospital

Rubinho fora transferido para o Hospital Maggiore de Bolonha, a cerca de 50 quilômetros de Ímola, para exames mais detalhados. Senna apressou as suas reuniões com a equipe Williams, depois da classificação, para ir até o hospital visitar o amigo. Pouco tempo antes daquele GP na Itália, Rubinho e Senna passaram dias juntos no Japão, em Tóquio, antes de embarcar para Aida a fim de disputar a segunda prova do campeonato.

Até hoje Rubinho descreve o prazer que teve de conhecer Senna mais intimamente naquela viagem. “Demos muita risada na Disney japonesa”, recorda Rubinho. “Foi importante para mim aquele contato, o Ayrton era o meu maior ídolo.”

Geraldo Rodrigues, empresário de Rubinho e anfitrião dos visitantes no hospital, me contou à noite, quando lá estive, que Senna se interessou em saber detalhes do estado de Rubinho e demonstrava apreensão. O Hospital Maggiore de Bolonha é público. Rubinho dividiu o quarto com outros dois pacientes.

Quando entrei no quarto, no início da noite, vi Senna e fiquei surpreso com a presença desses pacientes no mesmo local. Rubinho dormia. Tinha o rosto bastante inchado pela fratura do nariz. Liguei de um telefone público para o Estadão, a fim de passar um texto por telefone. Não havia onde escrever ali no hospital. Aliás, era uma concentração de pessoas impressionantemente mal educadas.

Não havia ainda a telefonia celular, ao menos popularizada, e a internet era algo que na prática ainda não existia.

Imaginei, na hora, como os europeus reagiriam se no GP do Brasil um piloto acidentado fosse levado ao Pronto Socorro do Hospital das Clínicas e depois permanecesse em observação na enfermaria, junto de outros doentes. Provavelmente a corrida não mais seria disputada no País.

A sexta-feira terminou para Senna ainda pior do que começara. O acidente de Rubinho o afetara visivelmente. Pude acompanhar o seu trabalho na Williams, depois, até onde nos é permitido chegar, na frente dessas garagens. Com toda certeza estava abalado. Ele mesmo confessou ter cometido vários erros na pista.

Coisas pioraram muito

Mas se a sexta-feira foi ruim, o sábado seria ainda pior. Roland Ratzenberger morreu ao colidir a 300 km/h com sua Simtek, na curva Villeneuve. Se o quadro emocional vivido por Senna já era difícil, por tudo que o cercava e o susto com Rubinho, no dia anterior, agora ganhara conotações dramáticas.

A F1 volta a conviver com o pesadelo da morte

Talvez o momento mais marcante para mim, envolvendo Senna naquele dia 30 de abril de 1994, sábado do GP de San Marino, foi quando o vi abraçado, apoiado no ombro do doutor Sid Watkins, do lado de fora do centro médico do circuito. Era mais ou menos 13:50.

Naquele instante Sid Watkins informou a Senna e a Charlie Moody, chefe da equipe Simtek, por onde corria o austríaco Roland Ratzenberger, que não havia nada o que se pudesse fazer pelo piloto, ele estava morto.

A F1 estava desacostumada a recolher seus mortos. Para aquela geração que competia na pista, a morte representava algo possível, lógico, mas muito distante. O último piloto a morrer em um GP havia sido o italiano Ricardo Paletti, da Osella, da largada do GP do Canadá de 1982, em Montreal.

Outro italiano, Elio De Angelis, perdera também a vida na F1, em 1986, durante testes particulares da Brabham em Paul Ricard, na França. Senna, Michael Schumacher, Mika Hakkinen, Damon Hill, por exemplo, nunca haviam convivido com a dura realidade da morte nos autódromos.

Senna chorara já no dia anterior, naquele mesmo local, um dos mais frequentados naquele fim de semana, o centro médico da pista de Ímola, quando Rubinho também sofrera grave acidente. Agora de novo ele estava lá, mas desta vez para algo bem pior, a perda de um colega de profissão.

Deu para perceber de onde estávamos, uns 20 metros do local, que Senna queria a todo custo entrar no mini hospital e não o autorizavam. Ele chegou lá depois de ir com um carro da organização da prova até a curva Villeneuve, onde Ratzenberger se acidentara. Quis entender o que havia acontecido. A FIA não gostou.

O belga Roland Bruynseraede, delegado de segurança da F1 e diretor de prova, mandou chamar Senna na torre de controle para lhe pedir explicações sobre o seu comportamento de solicitar  um carro oficial do GP para ir até o local do acidente de Ratzenberger. Não era sua atribuição. O respeito a hierarquia na FIA é algo que não se discute. Não há margem para nenhum diálogo. Era e é assim.

Soube que Bruynseraede lhe pediu satisfações. Senna sabia que a FIA não brinca e é dura nessas questões de manter a autoridade, apesar da situação absurda no caso. 

Segundo a assessoria da Williams, Senna respondeu a Bruynserae que, como piloto, interessou-se por compreender o que ocorreu na curva Villeneuve com Ratzenberger, daí dirigir-se até lá. Bruynseraede aceitou a explicação, mas o orientou a deixar essa responsabilidade para a FIA.

Reclusão total

Senna não voltou para a pista, assim como Michael Schumacher, depois da interrupção da segunda tomada de tempos, ocorrida aos 19 minutos de treino, por causa do acidente de Roland Ratzenberger. Gerhard Berger, da Ferrari, não se deixou abalar. Sentou no carro para tentar melhorar a marca de Senna e Michael Schumacher registradas no dia anterior. 

Fiquei impressionado com a frieza de Gerhard Berger, já que Roland Ratzenberger era austríaco como ele. O piloto da Ferrari não se deixou atingir pela perda do amigo, sentou no carro e acelerou tudo para ficar em terceiro no grid.

Ninguém conseguiu falar com Senna no restante daquele dia. Alegando falta de condições emocionais, ele não só não falou com ninguém como se recusou a treinar. Frank Williams o apoiou. 

O período de tensão da sua vida pessoal combinado com as dificuldades do seu momento na F1 transformaram Senna em um cidadão distante de tudo. Nos poucos minutos que pudemos vê-lo naquele sábado ele parecia longe, abatido, triste, reflexivo. Não creio que questionasse a validade do que fazia. Senna amava pilotar e deixava claro.

Falta de bom senso

Nesse dia, outro fator serviu também para lançar Senna no caos emocional total. Leonardo, seu irmão, ouvimos do paddock, havia trazido consigo do Brasil gravações telefônicas de sua namorada, Adriane Galisteu, com o ex-namorado. Total falta de bom senso.

O dia 30 de abril de 1994 de Senna no circuito Enzo e Dino Ferrari não terminou com a sua saída do autódromo, no fim da tarde, já com a 65.ª pole position da carreira, a última. 

As horas que se seguiram no hotel em que estava hospedado, na pequena cidade medieval de Doza, foram terríveis. Era muita coisa para administrar interiormente. Lutava contra os seus demônios.

Não bastasse as questões profissionais da F1, tensas ao extremo, com sua necessidade de resultados e, principalmente, a morte do colega, Senna estava investindo pesado nos negócios particulares. Para complicar e muito tudo, havia a história das fitas entregues pelo irmão. 

Quando Adriane aparecia na F1 Senna não escondia seu amor por ela. Deve ter sido um baque ainda mais desestabilizador para Senna saber das fitas, ainda que precisasse averiguar a veracidade dos fatos.

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